Por Derval Gomes Golzio, Thiago de Andrade Marinho, Alberto Araújo
Silva, Mayra Brito Ferreira, Cibelle Ferraz Pereira e Mônica dos Santos Lins em
27/03/2006 na edição 374
Apesar do tempo que separa a Abolição
da Escravatura no Brasil dos dias atuais, os afro-descendentes permanecem
discriminados no mercado de trabalho. Os resultados de uma análise de conteúdo
realizada com base em 58 reportagens na revista de maior circulação nacional, Veja, traduzidos neste paper, revelam que o número de profissões
ocupadas pelos afro-descendentes é bastante reduzido em comparação às ocupadas
e expostas pelo contingente branco do país. Para além de qualquer
questionamento sobre o preconceito sutil que caracteriza os textos
jornalísticos das reportagens que compõem a amostra é importante evidenciar que
a maior parte das profissões exercidas pelos afro-descendentes não exige, ou
pouco exige, escolaridade regular, como é o caso de desportistas, cantores e
músicos.
Introdução – A formação do povo brasileiro e a origem do preconceito
racial
A organização da sociedade brasileira no período colonial estava ligada
ao controle do senhor de engenho pela submissão de seus empregados livres e
escravos. Estes últimos trazidos de diversos lugares do continente africano
foram obrigados a romper bruscamente com suas raízes culturais, pois, eram
distribuídos em grupos de diferentes etnias, impedindo assim, a manutenção de
seus costumes, como ilustra Darcy Ribeiro (1995, 115):
"A diversidade lingüística e cultural dos contingentes de negros
introduzidos no Brasil, somada a essas hostilidades recíprocas que eles traziam
da África, e a política de evitar concentração de escravos oriundos de uma
mesma etnia, nas mesmas propriedades, e até nos mesmos navios negreiros,
impediu a formação dos núcleos solidários que retivessem o patrimônio cultural
africano".
A partir da inviabilidade de suas práticas culturais e do ilogismo na
adaptação dos valores e das tradições portuguesas, o africano foi adaptando a
sua cultura aos moldes brasileiros. Exemplo bem conciso, segundo Ribeiro (1995,
16), está na língua portuguesa mais leve e na religião católica menos ortodoxa.
"Simultaneamente, vão se aculturando nos modos brasileiros de ser e
o de fazer, tal como eles eram representados no universo cultural simplificador
de engenhos e das minas. Tem esse acesso, desse modo, um corpo de elementos
adaptativos, associativos e ideológicos oriundo daquela protocélula étnica tupi
que se consentiu sobreviver nas empresas, para o exercício das funções
extra-produtivas."
Outro aspecto que comprova tal fato advém do pós-escravismo, visto que,
depois da abolição, os negros foram entregues à condição de mão-de-obra
assalariada degradante, sistema não muito diferente da sociedade colonial, até
porque neste novo processo a escravidão continuou de maneira implícita,
estereotipada e discriminatória.
"As atuais classes dominantes brasileiras, feitas de filhos e netos
dos antigos senhores de escravos, guardam, diante do negro a mesma atitude de
desprezo. Para seus pais, o negro, escravo e forro, bem como o mulato, eram
meras forças energéticas, como um saco de carvão, que desgastado era
substituído facilmente por outro que comprava. Para seus descendentes, o negro
livre, mulato e o branco pobre são também o que mais há de rele, pela preguiça,
pela ignorância, pela criminalidade muita vezes inata e inelutáveis",
constata Darcy Ribeiro (1995, 221 e 222)
Essa aculturação inovadora do negro sem perspectiva de educação,
profissionalismo e capacitação, produziu estereótipos referentes a sua imagem
como: enfermo, perigoso e preguiçoso. É interessante notar a conceituação
mulata que se ocorreu no decorrer do tempo, seja pelo embranquecimento dos
negros, como pela enegrecimento dos brancos. Criou assim, uma morenização de
seus adeptos onde, não desejando a sua inserção no imaginário popular do negro,
também se distanciou da dita cultura branca.
A novidade na denominação de cores favoreceu outra visão preconceituosa,
dentre elas, a incidida pela classe social. O negro sendo pobre é mais negro e
possui menos aceitação social do que o negro rico. Este último, ao mudar seu
nível de renda, e conseqüentemente de consideração social permanece enfatizado
como modelo de superação.
Ribeiro (1995, 236 e 237) cita um exemplo claro acerca da situação das
classes:
"Assim é que mais facilmente se admite o casamento e o convívio com
os negros que ascendem socialmente e assumem as posturas, os maneirismos e os
hábitos das classes dominantes, do que com o pobre e grosseiro, seja ele negro,
branco ou mulato, por sua efetiva discrepância social, e sua evidente
marginalização cultural."
No transcorrer cronológico do povo brasileiro, não houve uma proposta
construtiva a fim de solucionar a problemática do preconceito racial dos
negros. A mídia com toda a sua evolução tecnológica, englobou essa temática num
conformismo sustentado pela discriminação e segregação.
"A nação negra comandada por
gente dessa mentalidade nunca fez nada pela massa negra que a construíra.
Negou-lhe a posse de qualquer pedaço de terra para vender e cultivar, de
escolas em que pudessem educar seus filhos e de qualquer ordem de
assistência", pondera Ribeiro (1995, 222). Portanto, é evidente a estreita
ligação que a história da formação brasileira, transmite hoje aos
acontecimentos sociais, emitindo preconceitos e segregações entre as raças. A
essência, a marca do preconceito racial brasileiro, manteve-se a mesma. Os
meios de comunicação (neste caso, a revista Veja) absorveram a problemática, e não se
preocuparam com uma crítica racional a suas conjunturas transladadas pelo tempo.
Gilberto Freyre (Casa Grande &
Senzala, 1933, 307 e 432 ), aborda o fato de como o negro foi usado na
construção do país utilizado como mão-de-obra, não só para os engenhos, mas nas
lavouras, nas marcenarias, nas criações de gado e que também serviu como fonte
de diversão e satisfação para senhores e senhoras de engenho quer sexualmente,
quer pelo simples gosto pelo mando. Os escravos eram utilizados inclusive nas
dependências pessoais da casa para substituir, por exemplo, donas de casa para
senhores viúvos, mães-de-leite para senhoras brancas que não conseguiam
alimentar seus filhos.
Os escravos exerciam ainda a atividade de professores dos filhos de seus
senhores. Nestes casos, eram mandados a aprender pelo menos os estudos básicos
nas cidades e eram trazidos de volta para ensinar aos pequenos. A intenção era
prolongar ao máximo a estada nas casas-grandes, já que um dia haveriam de
estudar nas cidades para, futuramente, conduzir os negócios dos pais.
Esse comportamento de uso do negro em
variadas atividades, porém, não trouxe benefícios para os escravos. Eles
continuaram à margem da sociedade, fato que perdura até os dias atuais. Isso
explica o fato das profissões que aparecem em maioria para negros e para
brancos: mandatários e servidores quase como uma regra. Fato interessante de
ressaltar em Casa Grande & Senzala diz respeito ao uso de uma espécie de "circo pessoal" de cada
senhor de engenho. Os exemplos citados por Freyre (1933, 434) revelam bandas
musicais e pequenos malabaristas que os senhores tinham entre suas
"propriedades". A questão do aculturamento do negro através desses
"privilégios" que alguns tinham de participar da sociedade branca
traz também uma fenda que possibilita uma explicação do preconceito entre os
próprios negros e afro-descendente.
O racismo existente hoje é ainda seqüela do período da escravidão.
Legalmente, a escravidão foi extinta e todos os seres humanos tornaram-se
iguais, com iguais direitos e deveres. No entanto, os negros, com séculos de
exclusão, foram jogados às ruas sem nenhuma lei que os incorporasse à sociedade.
Continuaram no mesmo estado de inferioridade em que se encontravam antes. Na
verdade, era difícil para uma sociedade que tinha a inferioridade negra como
verdade absoluta, entender, de uma hora para outra, que eles eram seres humanos
iguais aos brancos. Dessa forma, o efeito causado pela escravidão que, por
muito tempo castigou os negros, deixou vestígios que ainda hoje permanecem.
Independente das adequações que possam sofrer as políticas afirmativas,
hoje bastante em moda no país, o mais importante de todo o debate é perceber a
inserção da população afro-descendente no noticiário. Até então, a discussão
sobre a exclusão e resgate da dívida social com os descendentes dos escravos
brasileiros era muito tímida. Os espaços destinados aos negros e seus descendentes
estavam bastante definidos: o esporte (futebol e atletismo), a cultura popular
(samba, sambistas e afins) e as páginas dedicadas ao cotidiano violento das
cidades.
Jacques D’Adesky, em Pluralismo Étnico e Multicuturalismo: racismos e
anti-racismos no Brasil (2001, 66, 96 e 109), traz considerações sobre esse
aspecto. Ele afirma que o maior campo de ascensão profissional do negro na
sociedade situa-se em áreas ligadas ao esporte e à cultura. No caso da cultura,
sua maior inserção ocorre, mais especificamente, no campo da música, do
carnaval, do samba. Isso acontece, basicamente, pelo fato de que essas
atividades profissionais não exigem alto nível de escolaridade. Assim, como o
negro encontra-se geralmente nas classes mais desprivilegiadas da sociedade,
para eles é mais fácil alcançar nessas áreas a ascensão social. Além disso,
essas atividades – o samba, o futebol – são, historicamente, ligadas à figura
do negro, tido como malandro ou desocupado.
A recusa do ser humano em aceitar em seu círculo de convívio pessoas ou
grupos possuidores de características diferenciadas das suas é e sempre foi
muito forte. Sejam fatores físicos, religiosos ou ideológicos, essas
características diferenciadas são quase sempre vistas como ameaça. No que se
refere à etnia, as diferenças foram, no decorrer do tempo, motivos para
conflitos e diversos pontos do mundo. Os grupos humanos negam-se a aceitar a
mistura de povos de diferentes etnias. Parece que o ser humano tende a ver as
diferenças físicas como indícios de que a mistura entre as etnias não é natural
e que, por natureza, elas devem manter-se distantes umas das outras.
O Brasil é um país onde predomina uma miscigenação acentuada, sendo
muito difícil a classificação racial. A mestiçagem foi, historicamente, tão
intensa que praticamente não há mais pessoas puramente brancas ou puramente
negras. Apesar dessa constatação, o preconceito racial à moda brasileira –
menos conflituoso em comparação ao existente nos EUA – é bastante difundido e
perceptível na ocupação dos negros nas classes menos desfavorecidas que
integram a sociedade brasileira.
A questão, hoje, se manifesta de forma complexa. Como não existem apenas
brancos e negros, mas diferentes graus de mestiçagem, as formas de racismo são
múltiplas. O racismo do branco contra o negro, do mestiço mais claro contra o
negro, do branco contra o mestiço. O racismo que discrimina pelo tipo de
cabelo, pelo formato do nariz, etc. Em todo esse contexto, observa-se, porém,
que o negro está sempre na posição de discriminado. As características físicas
do afro-descendente são sempre consideradas inferiores.
De acordo com Jacques d’Adesky (2001, 137), há uma escala vertical de
valores de raça, na qual o branco ocupa o topo e o negro ocupa o ponto mais
inferior. Os pontos intermediários são preenchidos por termos como mulato,
moreno, sarará etc. Assim, a discriminação manifesta-se sempre contra um nível
mais inferior dessa escala. Muitos mestiços procuram classificar-se com termos
"amenizadores". Referir-se a si mesmo com termos como "moreno"
é uma forma de elevar-se na escala, aproximando-se do branco e distanciando-se
do negro. Essa tendência de tentar ser menos negro demonstra a não aceitação de
sua própria raça.
Ainda segundo Jacques d’Adesky (2001, 70), existe uma dupla negação. O
negro nega a sua raça, deixa de afirmar-se como negro para tentar aproximar-se
de um padrão mais aceito e nega também sua própria cultura negra. Assim, o
negro recusa sua origem negra e sua existência como negro para tentar
aproximar-se de um padrão mais aceito e nega também sua própria cultura negra.
Desta forma, o afro-descendente recusa sua origem negra e sua existência como
negro para incorporar-se ao universo dos brancos. Desprende-se de seus vínculos
culturais originais em troca da aceitação social.
Na verdade, geralmente não existe nem mesmo essas escolha. A falta de
contato com a cultura negra e o conceito já estabelecido pela sociedade a
respeito dela, distancia naturalmente o negro de sua origem. A mídia dita
padrões de estética, de música, de costumes como valores universais e a
dominação da raça branca sobre a mídia faz com que para todas as raças chegue
apenas a cultura predominantemente branca. O negro vive imerso em uma sociedade
dominada pela cultura branca que a torna quase única. Não toma consciência de
outras opções e assume o que vê ao seu redor como verdade.
A cobertura informativa sobre minorias étnicas
O "racismo simbólico", termo que surgiu nos anos 70 como forma
de abordagem e diferenciação às hostilidades e ódios manifestos a integrantes de
grupos étnicos e imigrantes. As formas mais atuais de xenofobia, racismo e
preconceito contra grupos étnicos tem, por vezes, a sutileza da sensação de
incômodo, insegurança desgosto e, em muitos casos, em medo e ressentimento
(Dovidio e Gaertner, 1992).
Van Dijk (1990, 29 e 30), ao abordar análise sociológica, ideológica e
sistemática de conteúdos informativos realiza incursão sobre pesquisa de
Downing, Hartman e Husband sobre representação de mulheres e grupos étnicos
minoritários observa que alguns temas como o crime, a violência e as drogas
possuem probabilidade maior de terem como protagonistas integrantes de minorias
étnicas, conformando desta forma uma correlação ilusória entre pertencer a
grupos determinados e atividades determinadas.
Recente pesquisa que analisou a cobertura jornalística da América Latina
na imprensa espanhola comprovou que 43,3% de um universo de 1.271 notícias
referentes ao Novo Continente estavam associadas a resultados negativos
(Igartua, Humanes, Cheng, García, Golzio, Niño, Amaral, Canavilhas e Gomes,
2003). Tais coberturas integram a denominação de racismo simbólico porque
incrementam a desconfiança entre os espanhóis em relação à massa de imigrantes
oriunda da América Latina.
Outro dado da pesquisa importante de ressaltar diz respeito as
diferenciações perceptíveis no tratamento noticioso que alguns países recebem:
Colômbia e Venezuela, por exemplo, associavam-se com temas ligados aos
conflitos armados, aos desastres e acidentes naturais; enquanto Brasil e
Argentina se associavam mais às questões econômicas e ao desemprego,
caracterizando o "ensalsamento" e o "desprestígio" na
cobertura informativa entre países.
Em estudos recentes, englobados pelo
enfoque dos efeitos dos meios de comunicação, desenvolveu-se uma corrente de
estudo da cobertura jornalística denominada teoria do framing ou
enquadramento noticioso. Nela, uma importante perspectiva de análise do
tratamento noticioso descreve o processo de produção jornalística segundo a
qual os meios de comunicação enquadram os acontecimentos sociais (1)
selecionando alguns aspectos de uma realidade percebida, (2) conferindo-lhe uma
definição concreta, (3) uma interpretação causal, (4) um juízo moral e/ou (5)
uma recomendação para seu tratamento.
Entendido dessa forma, a teoria do enquadramento noticioso (framing) vai
além da agenda temática: ela remete diretamente ao tratamento que as equipes de
produção e divulgação de notícias dão aos acontecimentos sociais. Se é verdade
que os meios de comunicação nos fazem pensar sobre determinados temas em
detrimentos de outros (estima-se que 70% das informações que chegam as redações
das empresas de comunicação são descartadas por "falta de espaço"), é
natural afirmar que, dependendo da forma como determinados problemas ou fatos
sociais são focados, as opiniões e atitudes no público podem mudar.
As pesquisas sobre preconceito no Brasil
Alguns estudos e pesquisas realizados sobre a questão do preconceito
racial no Brasil desenham modos e formas em que o problema é reproduzido pelos
meios de comunicação de massa. Filmes, novelas ou mesmo o noticiário televisivo
ou impresso tem contribuído significativamente para a consolidação de alguns
estereótipos sociais bastante difundidos no país. Em uma apressada observação
nos meios é fácil a percepção dos papéis sociais destinados à população
afro-descendente: serviçais, malandros, criminosos da periferia dos grandes
centros urbanos em produções cinematográficas e nas telenovelas e traficantes e
malfeitores em geral nos noticiários impressos e televisivos.
Ferreira Vaz e Brandão Tavares (2003,
5) abordam a representação fotojornalística do contingente de negros e
afro-descendentes em três grandes jornais – Folha de S. Paulo, O Globo e Estado de
Minas. Eles observam que as páginas nobres
(política e economia) são pouco freqüentadas por personagens negros e
afro-descendentes, contrastando com as dedicadas aos problemas da violência
urbana: "No universo desta temática, o negro mestiço desponta com grande
freqüência nas páginas dos jornais. Seja como agente ou vítima, as fotografias
expõem sua condição de excluído ou de submisso a uma grande ordem social
vigente. É nesse conjunto que essa alteridade se faz presente e é através dele
que muitas vezes, podemos dizer, estereótipos são reforçados, propiciando a manutenção
de uma imagem negativa destes indivíduos".
Outro exemplo claro de espaços
destinados aos negros e afro-descendentes encontra-se publicado na revista Política
Democrática: de um total de 1.852 capas da
revista Veja, desde sua fundação, apenas 58 possuem
personagens negros. Deste total, somente 45 apresentam negros e
afro-descendentes como protagonistas (Golzio, 2004, 153).
Além da diferença proporcional de
aparições entre brancos e não brancos o artigo aborda a forma estereotipada de
representação dos afro-descendentes. "Uma outra questão que aflora, a
partir dos números encontrados nas capas da revista Veja, diz respeito à formação de estereótipos a partir de imagens
distorcidas da realidade. Das 58 aparições de negros em capas, de forma
individual ou coletiva e independente do grau de protagonismo que exercem, os
negros possuem basicamente dois tipos de representação: o esportista e o
cantor" (Golzio, 2004, 154)
Golzio (2004, 155) observa ainda que o futebolista e o sambista
integravam, até cerca de 30 anos atrás, o que tradicionalmente era tido como
"propício ao caldo de malandragem e de desocupados do país: o futebol e o
carnaval". A observação teve como base as incidências nos temas
relacionados para a análise de conteúdo, onde constavam um leque de onze temas:
política, economia, trabalho/sindicato, esporte, cultura,
ciência/descobrimentos, guerras/conflitos armados, violência urbana, condição
de negro, crime e outros.
O protagonismo em imagens destinado à população afro-descendente
brasileira é constituído de pontos bastante demarcados: protagonistas em
situações onde são afetados pela violência ou praticantes de atos ilícitos.
Ainda protagonistas como atletas de destaque (futebol e atletismo com mais
freqüência) ou como figurantes, como massa de anônimos para dar reforço, em
geral, a personagens brancos de destaque ou afro-descendentes que compõem o
raro e seleto grupo de negros que emergiram graças ao talento para as artes
(representação e música).
Nos últimos três anos aflorou com mais consistência a discussão sobre
reparação da exclusão social vivenciada pela grande parcela de
afro-descendentes no Brasil. Dentre as possíveis formas de integração social
encontra-se a adoção do sistema de cotas nas universidades, por exemplo,
proposta como reparação aos danos provocados pela escravidão e pela situação
social discriminatória em que se encontra a parte da população caracterizadamente
afro-brasileira.
A discussão sobre cotas para minorias tem se intensificado na sociedade
brasileira. A Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), por exemplo, já
adota o sistema de cotas para afro-descendentes, desde 2001, tendo como base alguns
critérios de cota mínima. O exemplo está sendo seguido por outras instituições
de ensino universitário, com algumas particularidades. É o caso da Universidade
de Brasília e, mais recentemente, no curso de pós-graduação em Direitos Humanos
da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
Apesar de ter a composição de sua população formada, em sua maioria, de
negros e afro-descendentes, a participação efetiva desta parcela de brasileiros
na vida social é estigmatizada se compararmos proporcionalmente aos brancos. As
oportunidades de empregos são menores para negros que para brancos. Da mesma
forma os salários pagos aos trabalhadores brancos são, em média, bastante
superiores que os pagos aos afro-descendentes.
Entretanto, além da dificuldade de determinar que é ou não negro, isso
não deixa de ser uma forma de discriminação. A partir do momento em que gera
uma diferenciação é prejudicada a igualdade de direitos entre os seres humanos.
Os negros são novamente considerados inferiores, por precisarem de vagas especiais.
Além disso, é criada, agora, uma discriminação contra os que não forem negros,
sendo estes prejudicados.
Método
A presente pesquisa teve como método de trabalho o instrumento de
análise de conteúdo. Esta ferramenta tem sido largamente utilizada por
pesquisadores desde a década de 1960 e tem sido visto com desconfiança por boa
parte dos pesquisadores brasileiros por estar assentada em dados empíricos. No
entanto, ao tratar do método da Análise de Conteúdo, Bardin (1996, 21), aborda
o rigor e o descobrimento necessário à pesquisa cientifica e argumenta que
"recorrer a este instrumento de investigação laboriosa de documentos é
situar-se nas filas de quem, de Durkheim e Bourdieu, passando por Bachelard,
querem dizer não a ilusão de transparência dos fatos sociais, rechaçando ou
tentando afastar os perigos da compreensão espontânea".
O método de análise de conteúdo, portanto é fundamental para evitar
abstrações e o uso de intuição que em muitos dos casos só reforça a projeção da
subjetividade do próprio pesquisador. Ao adotar procedimentos sistemáticos de
verificação e comprovação de hipóteses, a análise de conteúdo se torna uma
ferramenta para a descrição e interpretação abalizada de mensagens. Trata-se de
estabelecer, segundo Bardin (1996, 31), de maneira consciente ou não, uma
correspondência entre as estruturas semânticas ou lingüísticas e as estruturas
psicológicas ou sociológicas dos enunciados. Não se trata de atravessar pelos
significantes para captar os significados da natureza psicológica, sociológica,
política, histórica etc., através de significantes ou significados manipulados,
enfatiza.
Por essa razão é importante
esclarecer que os dados encontrados a partir deste método foram analisados
levando-se em consideração o contexto político social do momento da publicação.
Para tanto, uma ficha de análise elaborada com o objetivo claro de obtenção dos
significados sociólogos e políticos da forma de representação social do negro e
afro-descendente das 58 reportagens de capas da Veja – de 1968
a 2003 – em que aparecem como protagonistas e coadjuvantes.
A elaboração da ficha de análise constituiu-se uma das atividades mais importantes
da pesquisa, já que definiu a apreensão da representação adotada pela revista
para o contingente de negros e afro-descendentes. De todas as formas, vale
lembrar o que observa Bardin (1996, 23) quando o assunto é a planilha ou ficha
de análise: "Enelanálisis de contenido no existenplanillasya
confeccionadas y lista para ser usadas, simplesmente se cuenta com
algunospatrones base, a veces dificilmente traspasables. Salvo para uso simples
y generalizados, como es el caso de laeliminación, próxima a ladecodificación,
de respuestas em preguntas abiertas de cuestionarioadecuado al ampo y al objeto
perseguidos, es necesarioinventarla cada vez, o casi".
A ficha de análise buscou identificar os temas em que, personagens
reconhecidos ou não do público, são enquadrados. Também teve a preocupação de
identificar os personagens mencionados no corpo das reportagens e buscou
estabelecer o nível de vinculação étnica e o fato jornalístico gerador do
espaço nobre da revista.
Amostragem
As 58 reportagens que integraram o
corpo da pesquisa foram escolhidas intencionalmente, com objetivo de
estabelecer a continuidade de pesquisa anterior que analisou a representação e
representatividade do negro e afro-descendente nas capas da revista Veja. O universo de capas analisadas somava 1.852 revistas, dispersos entre
todos os números compreendidos entre o primeiro e o último exemplar publicado
em 2003, ano em que a editora Abril comemorava os seus 30 anos de existência.
Tal continuidade permitirá, no futuro, uma comparação entra a forma de
representação gráfica e abordagem temática com o corpo da reportagem e as
imagens publicadas. A comparação é pertinente para detectar, inclusive, a
relação entre o personagem e a capa com o conteúdo de reportagem publicada. Em
muitas ocasiões, os personagens que figuram nas capas não passam de
representações alegóricas e decorativas.
O passo seguinte se traduziu na busca dos exemplares das revistas que
continham as 58 reportagens que enfocavam um personagem com característica
afro-descendente na capa e localização das reportagens correspondentes. De
posse das reportagens, o processo seguinte foi a criação de protocolo de
categorias de análise para cada código ou variável relevante e a proposição de
um sistema de quantificação de cada uma das variáveis. Selecionada as variáveis
e desenvolvido um sistema de categorias específico para cada uma delas, a
providencia seguinte foi a elaboração de um livreto de códigos (codebook), para
garantir que os codificadores tivessem um mesmo entendimento no momento de
avaliar cada critério ou variável.
Resultados
As 58 reportagens selecionadas como universo da pesquisa resultaram em
117 unidades de análise (cada uma dessas reportagens podia gerar uma série de
unidades coordenadas relacionadas com a reportagem principal, o que aconteceu
em 94, 80% do total), já que elas foram subdivididas por compartimentos
noticiosos. Para cada apartado ou informação coordenada, a reportagem principal
passou a ser traduzida como unidade de análise para efeito de contabilidade
Dados de identificação básicos
Em 86 das unidades de análise (73,5%) os personagens diretamente
relacionados com os fatos tratados foram mencionados ou ouvidos como fontes de
informação. Quanto a integrantes de governos identificou-se uma pequena
quantidade de aparições, ou seja, 15 inserções (12,8%). O gênero jornalístico
mais utilizado foi a reportagem com 102 unidades (87,9%), a nota 06 unidades
(5,1%), e notícia e entrevista com quatro freqüências (3,4%). A maioria das
reportagens é produzida pela redação (59,8% do total), muitas das unidades
pesquisadas possuíam mais de cinco paginas, totalizando 45 unidades (38,5%).
A quantidade de negros ou
afro-descendentes citados somou 307 personagens e os personagens brancos
apareceram 395 vezes. Este dado é bastante revelador, já que as reportagens
selecionadas para efeito de amostra tinham como referência a aparição de
personagens negros ou afro-descendentes, de forma integral ou parcial, através
de representação em imagem fotográfica, desenho, gráfico, foto-ilustração nas
capas da revista Veja. Em 24 (20,5%) das reportagens
nenhum personagem negro ou afro-descendente foi citado, enquanto que os
personagens brancos deixaram de ser citados em 34 unidades (29,1%).
Também é interessante ressaltar as aparições em imagens fotográficas que
acompanham as reportagens. No total, os personagens de características brancas,
aparecem 73 vezes enquanto que os personagens negros e/ou com características
afro-descendentes tiveram 65 aparições em fotografias, independente do grau de
protagonismo. A visibilidade dos personagens de características européia
(branca) contrasta com os de origem africana, reforçando a idéia de
embranquecimento populacional e reforçando estereótipos.
Indicadores relacionados com o tema ou problema abordado
Os principais temas abordados em todas as reportagens são: o esporte 35
unidades (29,9%), cultura 24 (20,5%) e política 11 (9,4%). A reportagem é
moderadamente pejorativa em uma pequena quantidade de exemplares (11,1% do
total), mas que se somado ao tratamento burlesco (9,4%) que algumas das
informações trazem em seu interior pode ser bastante significativo.
A análise do caráter do acontecimento foi retratada de três formas:
negativo 38 unidades (32,5%), neutro 40 (34,2%) e positivo 39 (33,3%),
demonstrando um equilíbrio bem definido nesse aspecto. Com relação ao tom de
relato foram detectados 62 unidades (53%) com abordagem neutra, mas registrando
grande equilíbrio entre o relato distendido 28 casos (23,9%) e o tenso com 26
casos (22,2%).
Indicadores relacionados com os atores do relato
Em cerca de 45 unidades (38,5%) não existia ou não foi identificado
nenhum personagem principal. Porém, em se tratando dos personagens é possível
detectar que apenas 22 unidades de análise (18,8%) possuem integrantes do
segmento dos políticos, os personagens famosos integram (50,4%) das unidades e
em apenas 30 unidades (25,6%) os personagens são pessoas normais, e em apenas
seis unidades (5,1%) os personagens são policiais.
Um dos principais fatos a ser destacado na questão do preconceito diz
respeito às profissões exercidas por negros e brancos, onde podemos observar
claramente a distinção entre eles. As profissões mais freqüentes nos relatos
jornalísticos para identificação do contingente de personagens negros ou
afro-descendentes são a dos atletas e dos artistas. Já o contingente de
personagens brancos citados nas unidades de análise possui como profissões os
atletas e políticos. Em princípio estes dados podem parecer nivelados, mas é
importante ressaltar que as reportagens mais freqüentes nas reportagens
selecionadas para efeito de amostragem estavam relacionadas ao esporte.
No entanto, se é observado o leque de profissões citadas para brancos e
negros, percebe-se que o contingente dos afro-descendentes reúne um leque bem
menor do que as que foram atribuídas aos personagens brancos. Os estereótipos
sociais, desta forma, são mais comumente presentes, já que as profissões
ocorrem em variedades menores. Sobretudo, por não ser exigido de atletas e
profissionais da área da cultura a passagem por bancos escolares regulares, o
que acontece na exigência das profissões liberais (engenheiros, advogados,
empresários, médicos etc.)
Profissões
de negros e afrodescendentes citadas na reportagens
Frequency
|
%
|
Valid %
|
Cumulative
%
|
||
Valid
|
34
|
29,1
|
29,1
|
29,1
|
|
agricultor
|
3
|
2,6
|
2,6
|
31,6
|
|
artista
|
21
|
17,9
|
17,9
|
49,6
|
|
atleta
|
34
|
29,1
|
29,1
|
78,6
|
|
economista
|
1
|
,9
|
,9
|
79,5
|
|
empresário
|
1
|
,9
|
,9
|
80,3
|
|
enfermeiro
|
1
|
,9
|
,9
|
81,2
|
|
escravo
|
4
|
3,4
|
3,4
|
84,6
|
|
etnólogo
|
1
|
,9
|
,9
|
85,5
|
|
funcionário público
|
1
|
,9
|
,9
|
86,3
|
|
político
|
14
|
12,0
|
12,0
|
98,3
|
|
professor
|
1
|
,9
|
,9
|
99,1
|
|
vendedor
|
1
|
,9
|
,9
|
100,0
|
|
Total
|
117
|
100,0
|
100,0
|
Profissões dos personagens brancos citadas na reportagens
Frequency
|
%
|
Valid %
|
Cumulative
%
|
||
Valid
|
40
|
34,2
|
34,2
|
34,2
|
|
assessor
|
2
|
1,7
|
1,7
|
35,9
|
|
advogado
|
1
|
,9
|
,9
|
36,8
|
|
agricultor
|
1
|
,9
|
,9
|
37,6
|
|
antropóloga
|
2
|
1,7
|
1,7
|
39,3
|
|
artista
|
12
|
10,3
|
10,3
|
49,6
|
|
atleta
|
28
|
23,9
|
23,9
|
73,5
|
|
economista
|
1
|
,9
|
,9
|
74,4
|
|
empresário
|
3
|
2,6
|
2,6
|
76,9
|
|
enfermeito
|
1
|
,9
|
,9
|
77,8
|
|
engenheiro
|
1
|
,9
|
,9
|
78,6
|
|
escritor
|
3
|
2,6
|
2,6
|
81,2
|
|
estudante
|
1
|
,9
|
,9
|
82,1
|
|
fazendeiro
|
1
|
,9
|
,9
|
82,9
|
|
jornalista
|
2
|
1,7
|
1,7
|
84,6
|
|
locutor
|
1
|
,9
|
,9
|
85,5
|
|
pintor
|
1
|
,9
|
,9
|
86,3
|
|
político
|
14
|
12,0
|
12,0
|
98,3
|
|
professor
|
1
|
,9
|
,9
|
99,1
|
|
treinador
|
1
|
,9
|
,9
|
100,0
|
|
Total
|
117
|
100,0
|
100,0
|
Discussão
A pesquisa teve como objetivo verificar a presença do preconceito racial
em relação ao contingente de negros ou afro-descendentes, seja no conteúdo dos
textos, seja nas imagens das reportagens publicadas em 58 edições da revista
Veja. Os resultados, significativos, estão entrelaçados à história da formação
social do Brasil.
Se no passado a organização da sociedade brasileira no período colonial
estava ligada ao controle do senhor de engenho pela submissão de seus empregados
livres e escravos, hoje se percebe o preconceito em relação ao contingente de
negros e afro-descendentes por parte dos meios de comunicação nas formas
simbólicas. Tal preconceito, maquiado, embute uma forma mais amistosa e menos
perceptível que os choques mais duros, a exemplo da segregação vivida em
determinados momentos da sociedade norte-americana, na forma proibitiva de
estar ou freqüentar determinados lugares ou galgar posições sociais.
É, portanto, bastante perceptível que a inserção do contingente de
afro-descendente se dá nos temas que focam mais a cultura (20,5%) e esporte
(29,9 %). A imagem que se projeta a partir desta constância é a de que os
afro-descendentes tenham mais pendor ou aptidão para estas duas áreas de
atuação profissional. Outro aspecto que comprova tal fato advém do
pós-escravismo, visto que, depois da Abolição, os negros foram entregues à
condição de mão-de-obra assalariada degradante, sistema não muito diferente da
sociedade colonial. Nesse novo processo, o modelo escravista continuou de
maneira implícita, estereotipada e discriminatória.
Conclusão
A pesquisa realizada trouxe resultados confirmadores das previsões
relativas à presença dos negros na sociedade. Não se trata apenas de
quantificar o grau de participação dos negros nas atividades profissionais ou
no universo social. Trata-se, principalmente, de investigar como e quanto essa
participação é retratada pela mídia. As respostas a essas questões foram
consideravelmente coincidentes com as previsões feitas.
Ao analisar o conteúdo dessas reportagens de capa, as mesmas foram
classificadas de acordo com seu tema principal. Dessa forma, foi constatada uma
grande quantidade de ocorrências de matérias cujos temas principais são esporte
e cultura. Levando-se em consideração que cada uma das revistas não possui
apenas uma, mas várias unidades de análise que integram a mesma reportagem,
naturalmente os temas tendem a repetir-se. No entanto, observou-se que há
repetições que não ocorrem em unidades de uma mesma revista, e sim em revistas
diferentes. As reportagens em que os assuntos abordados repetem-se inclusive na
revista Veja publicada em períodos diferentes são principalmente as que tratam
sobre a Copa do Mundo, as Olimpíadas ou o Carnaval.
A partir disso, pode-se concluir que a maior quantidade de incidência de
personagens negros nas reportagens analisadas ocorre em matérias que tratam
sobre esporte e cultura. É necessário analisar as razões dessa pequena
participação dos negros. É possível que os negros não tenham maior presença nessas
reportagens porque realmente não há grande participação deles nas atividades e
nos acontecimentos sociais. Porém, há também a possibilidade de que apenas não
seja do interesse das classes dominantes que os negros ganhem espaço na mídia.
O racismo está impregnado no pensamento da sociedade de tal forma que se torna
difícil fazer com que a grande massa aceite a imagem do negro na mídia. Por
essa razão, vêem-se tão poucos atores negros nas telenovelas e quase nunca em
papéis de destaque ou mesmo principais.
***
Derval Gomes Golzio, doutor em
Comunicación, Cultura y Educación pela Universidad de Salamanca e professor do
Curso de Comunicação Social do Departamento de Comunicação e Turismo do Centro
de Ciências Exatas e da Natureza da Universidade Federal da Paraíba; Thiago de
Andrade Marinho, bolsista do programa de Iniciação Científica (Pibic) do
Conselho Nacional de Pesquisa e aluno de Jornalismo do curso de Comunicação
Social da UFPB; Alberto Araújo Silva, Mayra Brito Ferreira, Cibelle Ferraz
Pereira e Mônica dos Santos Lins, alunos de Jornalismo do curso de Comunicação
Social da UFPB
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Fonte: http://www.mulheresnegras.org
Sugestão: Professora Márcia Oliveira - Pedagoga do CEMAP
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